Novas perspectivas para a biblioteconomia escolar no Brasil:
Um diálogo com as ganhadoras do Prêmio Da Vinci Huis - IASL Award for Brasil
Realizado por Bernadete Campello, em janeiro de 2015
Em 2009 a fundação Stichting het Da Vinci Huis, com sede em Amsterdã, na Holanda, criou o prêmio Da Vinci Huis - IASL Award for Brasil com a finalidade de dar oportunidade a bibliotecários brasileiros, que estejam desenvolvendo um trabalho inovador em biblioteca escolar, de participar do congresso anual da Associação Internacional de Biblioteconomia Escolar (IASL). A Conferência, que vem sendo realizada desde 1972, a cada ano em um país diferente, reúne bibliotecários e pesquisadores de vários países em torno de apresentação de trabalhos, debates, palestras e workshops.
Até hoje, cinco bibliotecárias brasileiras foram agraciadas com o Prêmio e viajaram para diferentes países. 2010 - Lília Virgínia Martins Santos, que trabalha na Escola Municipal Padre Francisco Carvalho Moreira, em Belo Horizonte, MG participou da 39ª Conferência que aconteceu em Brisbane, na Austrália. 2011 - Carla Floriana Martins que trabalhava na época na Província Marista Brasil Centro-Norte, em Brasília, DF, participou da 40ª Conferência em Kingston, na Jamaica. 2012 - Fernanda Caires, que trabalha na Chapel School em São Paulo, SP, foi para Doha, no Qatar, onde ocorreu a 41ª Conferência. 2013 - Carol Becker que trabalha no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense – Campus Rio do Sul, SC, recebeu o prêmio e participou da 42ª Conferência em Bali, na Indonésia. 2014 - Cíntia Bastos, da Pan American School of Porto Alegre, RS participou da 43ª Conferência que aconteceu em Moscou, na Rússia.
Quando receberam o Prêmio, todas as ganhadoras desenvolviam trabalhos ligados à aprendizagem dos alunos. O que aconteceu após receberem o Prêmio? Todas, com exceção de Carla que hoje atua como Gerente de Formação na Associação de Gestão e Engenharia de Sistemas de Informação (AGESIN) continuam trabalhando nas mesmas bibliotecas. Houve mudanças na vida profissional depois de receberem o Prêmio? Como a experiência influenciou seu trabalho? O que elas pensam a respeito do papel do bibliotecário na escola nesse cenário de grandes mudanças na educação? O que consideram que o bibliotecário pode fazer para se preparar para exercer um papel mais efetivo na aprendizagem?
Uma entrevista realizada com as cinco bibliotecárias em janeiro de 2015 procurou respostas para essas questões.
As respostas deixam claro, em primeiro lugar, que a viagem foi uma oportunidade de aprender, de ampliar e atualizar conhecimentos e de expandir horizontes, mas também de perceber que muita coisa precisa ser feita, que há muito que aprender para melhorar, tanto o próprio trabalho como as bibliotecas escolares do país.
Fernanda diz que “participar do encontro da Associação Internacional de Biblioteconomia Escolar em Doha, em 2012, foi uma ótima oportunidade para aprender sobre bibliotecas escolares ao redor do mundo. Ao entrar em contato com bibliotecários de diversos países, colegas com muitas experiências para compartilhar, pesquisadores cujos artigos tenho como referência e com experts convidados para palestrar e dar workshops, pude expandir meu horizontes como nunca antes”.
Carol afirma: “Após ter participado da 42ª Conferencia Internacional da IASL, voltei ao Brasil conhecendo as últimas pesquisas e ações que vem sendo desenvolvidas nas – e sobre as – bibliotecas escolares no mundo. O que é realmente uma biblioteca escolar, ou como esse local deveria ser. Isso me fez aprender, compreender e entender que ainda no Brasil precisamos caminhar muito para que haja o real entendimento sobre o objetivo, o papel e a necessidade de uma Biblioteca Escolar Viva no ambiente educacional. Em quanto a Biblioteca Escolar – apoiada em critérios de implantação e gestão - pode contribuir para o desenvolvimento dos alunos, dos professores e de toda a comunidade escolar”.
Lília conta: “Após participar da Conferência, minha visão da função da biblioteca escolar se ampliou. Percebi que há muito que se estudar e pesquisar. O compartilhamento de informações com colegas de todo o mundo foi importante para refletir sobre os desafios na implementação de boas bibliotecas escolares no nosso país”.
Para Carla “a experiência e a oportunidade de vivenciar um encontro internacional, específico da área de biblioteconomia escolar, foi muito significativa. Possibilitou o encontro com pares, a troca de conhecimentos, o acesso às discussões e experiências mais recentes sobre o tema, e, também, às polêmicas atuais relativas à biblioteconomia escolar, me ajudando a compreender como este conhecimento vem sendo construído e discutido ao redor do mundo. Profissionalmente, a participação no evento me trouxe um maior instrumental teórico e prático o que melhorou imensamente minha possibilidade de diálogo no meio educacional. Entretanto, esse acesso me levou também a um tipo de ‘angústia’ profissional, uma vez que percebi, de forma mais ampliada, que as bibliotecas escolares brasileiras ainda estão num processo muito embrionário no que se refere a seu desenvolvimento em relação às experiências exitosas ocorridas pelo mundo. Temos muito a caminhar para que, tanto os bibliotecários quanto a biblioteconomia escolar sejam percebidos no meio educacional brasileiro como componentes indispensáveis para melhoria das políticas públicas educacionais do país”.
Cíntia acredita que “a experiência [proporcionada pela participação na conferência] nos dá uma visão mais abrangente da biblioteconomia no mundo, nos fazendo refletir ainda mais sobre nosso papel e nossa atuação dentro da educação. É também uma forma de inspiração nos deixando um leque de novas ideias a serem aplicadas ou reinventadas nas nossas bibliotecas. Após a Conferência publiquei um artigo sobre a própria conferência em uma revista eletrônica internacional e me tornei uma Country Coordinator do International Librarians Network, grupo que visa a conectar bibliotecas pelo mundo para projetos de colaboração. Apresentei dois trabalhos em conferências internacionais online e um em uma conferência de biblioteca escolar de escolas internacionais no Rio de Janeiro. Recentemente fui convidada para atuar como bibliotecária escolar em uma escola internacional na República Dominicana. Acho que este prêmio me inspirou bastante, me dando ideias e me fazendo acreditar que como bibliotecários temos nosso lugar, porém precisamos nos fazer presentes e atuantes para conquistá-lo”.
Parece que o Prêmio “inspirou” também as outras e constituiu oportunidade de diversas mudanças.
Carol explica o que mudou: “Em meu trabalho, a influência de ter participado desta conferência serviu para quebrar paradigmas em relação à burocracia, normas e regras que tanto me foram ensinadas nos tempos da faculdade. Aprendi que o Usuário – seja Aluno, professor, faxineira, diretor ou pessoa da comunidade – é a nossa principal razão de existir, e é para Ele que devemos prestar um atendimento primoroso, indo muito além das expectativas que Ele vê ou tem da biblioteca, mas oportunizando novas experiências de aprendizado, compreensão e entendimento do mundo e de si. Também busquei colocar meu aprendizado em prática: realizando uma maior aproximação com os professores, com o desenvolvimento de atividades na biblioteca, com o oferecimento de oficinas sobre variados temas, com a realização de atividades culturais de incentivo ao livro, à leitura e a biblioteca. A sensibilização e o compartilhar que tenho com meus colegas de trabalho em relação à biblioteca e ao que posso contribuir no ambiente educacional são atividades que realizo praticamente diariamente. Hoje entendo que a sociedade é ignorante – no sentido de não conhecer, não saber - o real fazer da biblioteca e do bibliotecário, e é nosso papel ensinar sobre isso, desmistificar. Profissionalmente, compartilhei com muitos colegas no Brasil a aprendizagem que tive, inclusive tenho realizado palestras em alguns estados. E isso tem sido muito gratificante para mim”.
Fernanda conta: “depois de ter participado do evento fui incorporando aos meus projetos informações que obtive na conferência. Uma das ações foi incluir mais tecnologia nas aulas na biblioteca (há diversos bibliotecários que escrevem sobre tecnologia e mantêm blogs interessantíssimos). Outra coisa foi buscar parcerias com professores para que os projetos realizados na biblioteca fossem ‘linkados’ com os conteúdos da sala de aula. Desse modo, pude me colocar não apenas como a pessoa que cuida do acervo da biblioteca, mas também como alguém que pode contribuir para o desenvolvimento do currículo da escola”.
Para Lília e Fernanda outra consequência do Prêmio foi uma maior “visibilidade”. Lília considera que “O Prêmio da Vinci proporcionou uma grande visibilidade do papel da biblioteca escolar na Secretaria de Educação. Penso que uma premiação internacional como esta consegue chamar a atenção sobre nosso local de trabalho, com a valorização dos profissionais e um maior apoio aos projetos propostos”. Fernanda concorda, dizendo que “o Prêmio me deu uma grande visibilidade e prestígio. As pessoas do meu ambiente de trabalho passaram a me olhar diferente”.
Indagadas sobre o que pensam a respeito do papel do bibliotecário na escola nesse cenário de grandes mudanças na educação, as entrevistadas revelaram sua crença de que esse profissional tem espaço significativo na mudança.
Lília coloca a questão numa perspectiva ampla dizendo que “A escola brasileira precisa ser repensada para que ofereça aos alunos as melhores oportunidades para se tornarem cidadãos plenos. As políticas educacionais já começam a ser elaboradas com uma visão mais ampla de letramento, distante de antigas concepções mais tradicionais e excludentes. A biblioteca escolar, neste novo contexto, tem um papel importantíssimo. É neste espaço que os alunos podem adquirir ferramentas para se tornarem competentes na busca da informação, além de encontrar uma maior aproximação com o universo literário. No entanto, somente com profissionais capacitados, a biblioteca poderá exercer plenamente suas funções. Pensar em espaços ampliados e acervos diversificados sem a presença do bibliotecário pode inviabilizar a implementação de ações significativas para o setor. O bibliotecário que atue como articulador das propostas de acesso a informação e a leitura é indispensável para a evolução da biblioteca escolar no Brasil”.
Carla reforça a importância da biblioteca afirmando que “Num cenário onde a educação é ponto primordial para o crescimento e desenvolvimento de pessoas consideradas autônomas, éticas e responsáveis, o bibliotecário escolar pode exercer uma posição privilegiada. Mesmo não sendo ele o protagonista dos processos educacionais planejados na escola, é ele quem detém, ao organizar um espaço voltado para o saber, o aprendizado e a cultura, a capacidade de fazer da biblioteca um espaçotempo adequado para a mediação e construção do conhecimento. Sua participação no corpo técnico pedagógico institucional e sua postura como educador/mediador da informação impõe uma melhoria na dinâmica escolar, onde a Biblioteca, e seus recursos, passam a ser essenciais ao desenvolvimento de seus educandos e demais usuários, tornando-os coparticipantes do processo de mediação e aprendizagem”.
Fernanda e Carol procuram explicitar o papel de educador do bibliotecário, com suas peculiaridades. Fernanda afirma que “o bibliotecário no contexto da escola torna-se também um educador. Entretanto, não acredito que ele deva ser visto como professor ou coadjuvante no ensino-aprendizagem de conteúdos disciplinares e sim como um especialista em processos de mediação de informação. No momento atual, em que nos deparamos com essa avalanche informacional, o bibliotecário escolar pode e deve ser a pessoa que ajuda na construção de habilidades, competências e valores dos sujeitos no trato com a informação. Seu papel vai desde a formação de leitores até a construção de competências informacionais”.
Carol, por sua vez, considera que “O bibliotecário tem o papel de mediador, de educador e de responsável em estimular, desenvolver e incentivar nos alunos prazeres de leitura, de escrita, de cultura e de desenvolvimento pessoal. Porque a biblioteca é um lugar democrático, um lugar de acesso, um lugar aberto, um lugar de descobertas. Um espaço aonde os usuários podem adentrar e lá desfrutarem de inúmeras atividades, de inúmeros prazeres: seja o encontro com o livro, seja o compartilhar e aprender com colegas, seja o esclarecimento de uma dúvida, seja o ouvir histórias, seja a leitura de um jornal, seja um jogo, seja o silêncio ou a bagunça na biblioteca. A biblioteca escolar tradicional, muito regrada, muito quieta, muito organizada, a meu ver, não atende as expectativas dos alunos, não desperta no aluno a vontade de frequentar o local. A biblioteca deve ter vida, e é o bibliotecário que deve colorir esse local”.
Cíntia vê o bibliotecário como “uma peça coringa” na escola, podendo atuar em diversas áreas. Como “líderes em pesquisa, integração tecnológica e uso ético de informação, o bibliotecário deve conhecer o currículo e ser capaz de integrá-lo com os materiais que a biblioteca oferece, fazendo com que ela seja mais atuante e significativa na educação dos alunos”. Procuramos também saber a opinião das entrevistadas sobre a formação desse “bibliotecário educador”, isto é, como o bibliotecário pode se preparar para exercer um papel efetivo na aprendizagem, já que parece haver uma crença de que ele não está preparado para essa tarefa.
Lília e Carla concordam que o bibliotecário precisa estar por dentro das questões educacionais. Lília explica sua posição e sugere que “O profissional da biblioteca escolar deve procurar entender as particularidades deste tipo de biblioteca e as novas concepções do contexto educacional. Só assim, com conceitos embasados, será possível contribuir e dialogar com a comunidade escolar, no estabelecimento de seu papel como parte integrante do processo de aprendizagem”.
Carla detalha essa ideia, mostrando a necessidade de um perfil de pesquisador, a fim de se romper com as abordagens tradicionais da ciência e da educação, dizendo: “Acredito que, diante dos novos paradigmas da educação, o exercício mais efetivo do bibliotecário escolar estará muito ligado a um posicionamento mais fluido e aberto às possibilidades vindas das formas como aprendemos e ensinamos no século XXI. O trânsito tranquilo entre tecnologias tem um importante papel nesse processo. A Biblioteconomia escolar é um campo polissêmico e acredito que o rompimento com o linear, o cartesiano e com homogêneo é um bom começo para uma melhor circulação desse profissional junto ao meio educacional e suas peculiaridades. Nesse sentido, acredito que o bibliotecário que opte por atuar em bibliotecas escolares se prepare para um perfil de profissional pesquisador, pronto a desconstruir e diversificar seus espaços conceituais de acordo com as necessidades de seus usuários/educandos”.
Cíntia aborda essa questão de forma mais específica, dizendo: “... o bibliotecário deve se familiarizar com o currículo ensinado na escola e estar sempre atualizado. Nos dias atuais, o acesso a informação foi facilitado com o acesso a internet, logo, para acompanhar este crescimento e as áreas de interesse dos alunos, ele também precisa dominar essas tecnologias e conseguir integrá-las com seus serviços”.
Fernanda explora outros aspectos e considera que o bibliotecário escolar deve se preparar para muitos desafios. Ela diz: “O bibliotecário, à medida que se dispõe a estar no ambiente escolar, necessita conhecer a sua comunidade e pensar projetos que sejam adequados às suas necessidades. Para que o bibliotecário possa atuar com sucesso no ambiente escolar, além do preparo acadêmico fundamental, é necessário o estabelecimento de parcerias com professores e estar sempre preparado para muitos desafios”.
Carol concorda que o aprendizado tem que ser constante, a graduação é apenas o começo, e detalha o perfil do bibliotecário escolar: “Sendo um eterno aprendiz, um eterno curioso, um leitor, e entendendo que a aprendizagem ao longo da vida é algo necessário para este profissional, é algo prazeroso e é algo que nos alimenta. Entendendo que a faculdade é apenas um início, mas que devemos nos capacitar, re-aprender, quebrar paradigmas, participar de associações e conselhos de classe, fazermos especializações, mestrado, doutorado, compartilhando nosso conhecimento e aprendendo com o conhecimento de outros colegas. Sendo etenos aprendizes. Assim sendo, o bibliotecário será capaz de participar ativamente da vida escolar: nos planejamentos; fazendo parceria com professores; inserindo as atividades da e na biblioteca no currículo escolar; realizando atividades com alunos, professores e comunidade, e fazendo com que a biblioteca seja um lugar prazeroso, um lugar de descobertas”.
Este diálogo com as cinco bibliotecárias ganhadoras do Prêmio Da Vinci Huis - IASL Award for Brasil revela um conjunto de impressões acerca de uma experiência similar, isto é, a participação em um evento internacional a partir de uma trajetória inovadora. Percebe-se que elas têm em comum a capacidade de produzir novos modos de trabalho, ou seja, a experiência de criar novas questões a partir de questões antigas foi ampliada. Mudou também a visão de que a aproximação com a comunidade científica/profissional da área é importante, sendo unânime a afirmação da necessidade de aprofundamento nas questões vistas e discutidas durante os eventos. Por fim, pode-se dizer que todas as ganhadoras defendem a biblioteca escolar como missão profissional e pessoal.
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